REENCONTRO DO ESTADO COM AS RUAS
RUDÁ RICCI
Nada mais equivocado. O que está no decreto é respaldado numa experiência de mais de duas décadas em todo o território nacional, por meio dos 30 mil conselhos de gestão pública existentes
O desencontro do campo institucional de representação política com o cotidiano dos brasileiros ficou estampado nos últimos meses. As manifestações de junho do ano passado expuseram ressentimentos e novas demandas. A reação dos políticos profissionais foi conservadora.
Durante a Constituinte de 1987, o reencontro do país teve sua chance. O municipalismo se aliou com o que alguns juristas denominaram de participacionismo. O primeiro artigo da Constituição de 1988 é explícito quando afirma que o poder popular é plasmado através dos representantes eleitos e diretamente. Diretamente. O artigo 14 indica o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular como instrumentos de exercício da soberania popular. O artigo 204 inaugura o campo da cidadania ativa.
Serviu de inspiração para a produção de inúmeras leis federais, como a de nº 8.742 (de 1993), que institui a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas assistenciais; ou a de nº 8.080 (de 1990), que impõe que o SUS observe a participação dos cidadãos na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico.
O Brasil incorporou, há décadas, a participação do cidadão na gestão das políticas públicas como metodologia institucional, muito mais complexa que meros mecanismos de democracia direta, ampliando a representação social. A prática se tornou objeto de interesse mundial. Pesquisadores de Bangalore (Índia) recorreram ao Brasil para estudar tais inovações. Os Estados Unidos discutem a introdução do orçamento participativo em sua prática cidadã. Diversas experiências internacionais seguem a mesma lógica, como os comitês de bacia hidrográfica da França ou o Grande Conselho de Londres.
Esse é o espírito que preside o decreto nº 8.243, que cria a Política Nacional de Participação Social. Trata-se de reencontro do Estado com as ruas. O clima artificialmente contaminado pela eleição --já que grande parte da população a percebe como disputa entre elites-- procurou solapar uma das raras tentativas de revitalização do aprendizado da nossa Constituição Federal. Opiniões apressadas foram disseminadas como se estivéssemos à beira da reedição dos sovietes.
Nada mais equivocado. O que está no decreto é respaldado numa experiência de mais de duas décadas em todo o território nacional, por meio dos 30 mil conselhos de gestão pública existentes (saúde, assistência social, educação e outros), grande parte deles deliberativa cujas resoluções nacionais já são acompanhadas pela Secretaria-Geral da República. O que faz de algumas opiniões disseminadas uma irresponsabilidade política e jurídica.
Os protestos de rua precisam de resolução institucional urgente. Conservar o que parece estar à beira da deslegitimação é apostar na crise. Ouvir o desejo dos brasileiros deveria ser princípio de todos profissionais desta terra. Nesse assunto, desinformar o cidadão, criando artificialmente o pânico, é fazer joguete com nossa democracia.
MESQUITA EXALTA 1964 E CRITICA "GOLPE" DE DILMA
"Um golpe contra a democracia está em curso desde o último dia 26 de maio e a circunstância que o torna mais ameaçador do que nunca antes na história deste país é a atitude de avestruz que a imprensa tem mantido, deixando de alertar a população para a gravidade dessa agressão", diz o jornalista Fernão Lara Mesquita, um dos herdeiros do Estado de S. Paulo; o que o apavora é o decreto da presidente Dilma Rousseff que amplia canais de participação popular no Estado
11 DE JUNHO DE 2014 ÀS 06:44
247 - O jornalista Fernão Lara Mesquita, um dos herdeiros do Estado de S. Paulo, está com medo. O que o apavora é um decreto da presidente Dilma Rousseff, que amplia canais de participação popular no Estado. Para ele, isso representa um "golpe"– bem mais grave do que o de 1964, que foi apoiado pelo jornal da família. Leia abaixo:
Acorda, jornalista!
Manchetes sobre o golpe de 1964 se sucedem, mas para o de 2014 o destaque é próximo de zero. Nenhum critério jornalístico justifica isso
Fernão Lara Mesquita
Um golpe contra a democracia está em curso desde o último dia 26 de maio e a circunstância que o torna mais ameaçador do que nunca antes na história deste país é a atitude de avestruz que a imprensa tem mantido, deixando de alertar a população para a gravidade dessa agressão.
O decreto nº 8.243, assinado por Dilma Rousseff, que cria um "Sistema Nacional de Participação Social", começa por decidir por todos nós que "sociedade civil" deixa de ser o conjunto dos brasileiros e seus representantes eleitos por voto secreto, segundo padrão universalmente consagrado de aferição da legitimidade desse processo, e passa a ser um grupo indefinido de "movimentos sociais" que ninguém elegeu e que cabe ao secretário-geral da Presidência, e a ninguém mais, convocar para examinar ou propor qualquer lei, política ou instituição existente ou que vier a ser criada daqui por diante em todas as instâncias e entes de governo, diretas e indiretas, o que afeta também os governos estaduais e municipais hoje na oposição.
Apesar da violência desse enunciado, a maioria dos jornais e televisões do país nem sequer registrou o fato. E mesmo os que entraram no assunto depois vêm diluindo o tema no noticiário como se não houvesse nada com que seus leitores devessem se preocupar. Prossegue a sucessão de manchetes em torno do golpe de 1964, mas para o de 2014 o destaque é próximo de zero. Nenhum critério jornalístico justifica isso.
Esse decreto é, na verdade, um excerto do Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), que o PT já tentou impor antes ao país também por decreto --nas vésperas do Natal de 2009, no apagar das luzes do governo Lula--, mas que, graças à forte reação da imprensa e consequente mobilização da opinião pública, foi obrigado a abortar.
O PNDH-3 contém 521 propostas que, além da revogação da Lei de Anistia, que passou "no tapa" depois que a imprensa comprou a ideia do governo de que a prioridade nacional é voltar 50 anos para trás e não correr 50 anos para a frente, institui "comissões de direitos humanos" nos Legislativos para fazer uma triagem prévia das matérias que eles poderão ou não processar; impõe a censura à imprensa; obriga a um processo de "reeducação" todos os professores do país; veda ao Judiciário dar sentenças de reintegração de posse de propriedades "rurais ou urbanas" invadidas, prerrogativa que se torna exclusiva dos "movimentos sociais"; desmonta as polícias estaduais para criar uma central única de comando de todas as polícias do país, e vai por aí afora.
Ciente de que tal amontoado de brutalidades jamais será aprovado pelo Legislativo, o PT está tratando de fazer com esse Poder o mesmo que fez com o Judiciário. Os juízes não dão as sentenças que queremos? Substituam-se os juízes por juízes "amigos". Um Legislativo eleito pelo conjunto dos brasileiros jamais transformará essas 521 propostas em lei? Substituam-se os legisladores por "movimentos sociais" amestrados sob a tutela da Presidência da República...
O argumento de que esse é o jeito de forçar o Congresso a reformas não é honesto. Para forçar reformas que o povo deseje, existem instrumentos consagrados tais como o do voto distrital com recall, que arma as mãos de todos os eleitores para demitir na hora os representantes que resistirem ou agirem contra a sua vontade. Este tipo de participação, sim, opera milagres estritamente dentro dos limites da democracia. Substituir os representantes eleitos por "representantes" que ninguém elegeu tem outro nome: chama-se golpe.
Depois da rendição do Judiciário com a renúncia de Joaquim Barbosa, só sobra a imprensa. E os feriados da Copa farão com que só haja pouco mais de meia dúzia de sessões legislativas completas em junho e julho somados. Depois é véspera de eleição. É bom, portanto, que ela desperte já dessa letargia, pois não haverá segunda chance: está escrito no PNDH-3 que a imprensa é a próxima instituição nacional a ser desmontada.
DECRETO QUE CRIA POLÍTICA DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL PRETENDE CONSOLIDAR DEMOCRACIA NO PAÍS
RUI FALCAO
Não há democracia e amadurecimento de uma nação sem participação da sociedade. E não há participação sem uma sociedade civil organizada e com canais institucionais para interagir com as decisões do governo
Brasil completará 30 anos de restauração da democracia em março de 2015. Nessas três décadas, a democracia já proporcionou melhorias concretas na vida dos brasileiros e contribuiu de maneira decisiva para a redução da desigualdade social.
A partir da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, o fosso que separa ricos e pobres diminuiu de forma estrondosa, e a política de combate à miséria do país, levada à frente pela presidenta Dilma Rousseff é hoje referência mundial. O Brasil cresceu, distribuiu e tornou-se mais justo.
Sem democracia, nada disso teria ocorrido. Mas é preciso ir além. É preciso construir as bases legais e institucionais para sua consolidação. Ampliar a participação de todos os atores sociais (cidadãos, movimentos sociais, redes e organizações) nas decisões governamentais é vital para o futuro do país.
Não há democracia sem participação e sem soberania popular, como, aliás, preconiza a Constituição Federal: "Todo poder emana do povo, que o exerce indiretamente, por representantes eleitos, ou diretamente nos termos desta Constituição".
Não haverá avanço da democracia no Brasil se não for ampliado o espaço público de participação. Ao Estado democrático não é dado o direito de se omitir. Cabe a ele propor leis e medidas institucionais para garantir a participação da sociedade. Mais que isso, é preciso que o Estado garanta uma participação equânime de todos os segmentos sociais, independentemente de seu poder econômico, político ou social.
Foi exatamente isso que a presidente Dilma Rousseff fez ao assinar o decreto 8243/2014, criando a Política Nacional de Participação Social, que estimula a participação dos conselhos, movimentos sociais e da população em medidas do governo.
O objetivo da lei é promover a participação social na formulação, acompanhamento, monitoramento e avaliação das políticas públicas, além de prever canais de articulação da sociedade com as três instâncias de governo: federal, estadual e municipal.
Não há democracia e amadurecimento de uma nação sem participação da sociedade. E não há participação sem uma sociedade civil organizada e com canais institucionais para interagir com as decisões do governo. Seja no município, no Estado ou no país. Importante ressaltar que ninguém será remunerado por participar desse processo de representação.
A democracia brasileira somente irá avançar se o Estado propiciar que cidadãos, entidades e movimentos da sociedade civil influenciem na definição de políticas públicas, seja colaborando, propondo, criticando ou apontando alternativas.
Segundo o decreto assinado pela presidente, considera-se sociedade civil o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações. Todos podem participar.
É inadiável que a transparência e a participação passem a integrar o cotidiano de todos os órgãos e instâncias de governo. Consultas públicas, audiências públicas, mesas de diálogo e ouvidorias devem ser rotina no espaço público. O cidadão assim o exige. O diálogo direto vai dar qualidade e legitimidade às ações de governo.
O Marco das Organizações da Sociedade Civil é exemplo disso. Por meio dele, as propostas da sociedade coletadas em consultas e audiências públicas são incorporadas às propostas do Executivo e encaminhadas ao Senado. O orçamento participativo, implantado em centenas de prefeituras pelo país, foi um exercício profícuo de cidadania e de resultados práticos da parceria entre governos e comunidades.
Para vários especialistas, a aliança entre Estado e sociedade civil criada pelos mecanismos democráticos diretos é um dos fatores que explicam o modelo de crescimento econômico com distribuição da renda implementado a partir de 2003.
A sociedade civil e os governos debateram e consolidaram políticas públicas que influíram de forma direta na melhoria das condições de vida do cidadão brasileiro. Desde o primeiro PPA (plano plurianual) do governo do presidente Lula, a contribuição da sociedade foi vital para a economia brasileira, o desenvolvimento e o combate sem trégua à miséria.
A partir do governo Lula, um novo tipo de diálogo foi estabelecido entre o Estado brasileiro e a sociedade civil. Houve um crescimento inegável de participação social nas decisões governamentais.
Esse processo avançou no governo da presidente Dilma, que mais uma vez prioriza a participação da sociedade e inova ao propor medidas concretas para garantir o diálogo com todos os segmentos sociais. O decreto assinado pela presidenta é mais um passo para ampliar a participação social e consolidar a democracia brasileira.
BRESSER PEREIRA DEFENDE PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Cientista político Luiz Carlos Bresser-Pereira sai em defesa do decreto sobre a política de participação social: ‘Os liberais afirmam que o decreto implica o risco do surgimento de "um poder paralelo". Isso é puro nonsense. A democracia participativa convoca as organizações da sociedade civil e os cidadãos para participarem da definição das políticas públicas, mas de forma consultiva’
12 DE JUNHO DE 2014 ÀS 08:08
247 – O cientista político Luiz Carlos Bresser-Pereira critica as vozes liberais contra o decreto sobre participação social. Segundo ele, reação negativa revela sua determinação de limitar a qualidade da democracia brasileira. Leia:
Liberais afirmam que o decreto sobre participação social implica o risco do surgimento de "um poder paralelo". Puro nonsense
A reação negativa de certos setores da sociedade ao decreto definindo a política de participação social do governo revela sua determinação de limitar a qualidade da democracia brasileira; de fazê-la perder o caráter razoavelmente participativo, que já tem, para ser apenas liberal.
Para a teoria política, existe um conceito mínimo de democracia: é o regime político que garante os direitos civis e o sufrágio universal. Esse conceito corresponde à forma de democracia que os liberais aceitaram nos países ricos no final do século 19, limitando a participação do povo à eleição de representantes sobre os quais ele teria pouco poder.
É evidente que o processo não poderia parar aí --que a qualidade da democracia não poderia restar mínima. A alternativa seria a democracia direta, mas o obstáculo maior para isso está na grande dimensão dos Estados-nação. Isso deve ter contribuído para que a definição de uma democracia que fosse realmente o "governo do povo" assumisse a forma viável de democracia representativa e participativa após a Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, a democracia participativa foi inicialmente defendida por grupos católicos progressistas e seu maior entusiasta foi meu saudoso chefe no governo de São Paulo, André Franco Montoro. A ideia depois foi encampada pelo PT e se transformou em uma de suas maiores bandeiras, mas jamais exclusiva desse partido. Isso ficou claro na Constituição de 1988, com seus 12 incisos que abrem espaço para a democracia participativa.
Mas a participação popular não ficou apenas na letra da lei. Ela já é uma realidade viva e objeto de estudos. Uma das experiências, a do orçamento participativo, ganhou projeção mundial. Em uma instituição de alto nível como o Cebrap, existe um grupo voltado para o estudo das experiências de democracia participativa; prática que se repete nas grandes universidades brasileiras.
O decreto nº 8.243, portanto, não legisla sobre o nada. Pelo contrário, as formas de participação que define --as conferências nacionais, a ouvidoria pública, as audiências e consultas públicas-- já existem no Brasil e muitas delas, especialmente as conferências nacionais, são dotadas de grande vitalidade e legitimidade.
Os liberais afirmam que o decreto implica o risco do surgimento de "um poder paralelo". Isso é puro nonsense. A democracia participativa convoca as organizações da sociedade civil e os cidadãos para participarem da definição das políticas públicas, mas de forma consultiva.
Há uma forma mais avançada, senão utópica, de democracia que é a "deliberativa", defendida por filósofos políticos como Jürgen Habermas e John Rawls. Mais avançada porque os conselhos populares teriam alguma autoridade para tomar decisões.
O decreto não é uma ameaça à democracia; pelo contrário, revela seu avanço relativo. O decreto não põe em discussão o caráter representativo da democracia, mas estabelece um mecanismo um pouco mais formalizado por meio do qual o governo poderá ouvir melhor as demandas e propostas da sociedade civil.
Alguns críticos afirmam que essa seria uma forma de "pressão" das organizações da sociedade civil sobre os parlamentares e as agências do governo, mas desde quando ouvir os cidadãos é ser vítima de pressão? Ao contrário, a democracia participativa é uma forma de se contrabalançar a pressão antidemocrática dos lobbies na defesa de pleitos que geralmente conflitam com o interesse público.
É comum ouvirmos que as democracias contemporâneas enfrentam uma crise. Essa tese é discutível, porque é da natureza da democracia refletir aspirações que não podem ser totalmente atendidas e conflitos para os quais não há solução fácil. Não tenho, entretanto, qualquer dúvida de que a democracia brasileira está forte e que o seu caráter participativo, ainda que limitado, é um de seus principais trunfos.