Se você tem menos de 30 anos de idade hoje, significa que estava por perto dos 10 anos de idade em 1989. Por isso, não viveu a campanha presidencial daquele ano. Escrevo “viveu” no sentido de entender perfeitamente o que se passou à sua volta. Você leu a respeito ou ouviu dizer. Viver é outra coisa.
Antes, porém, vamos à origem deste post. Eu conversava com um colega jornalista a respeito de um texto que publiquei no Viomundo em que narrei minha experiência pessoal nos bastidores da TV Globo, emissora da qual eu era repórter na temporada eleitoral 2005/2006.
O post está aqui, mas eu resumo: descobri, por experiência vivida, que só cabiam denúncias contra o PT ou aliados do PT. Denúncias que batiam em outros partidos e especialmente no então candidato a governador de São Paulo, José Serra, eram menos denúncias.
Esta capa da Veja, por exemplo, mereceu repercussão acrítica na Globo. Ou seja, o Jornal Nacional reproduziu trechos do texto da revista sem confirmar de forma independente o conteúdo. Do ponto-de-vista factual, foi uma reportagem baseada em ilações e suposições. Nenhuma materialidade.
Já esta capa da IstoÉ não mereceu repercussão, acrítica ou crítica.
Na verdade, depois que colegas cobraram isonomia da direção da Globo em São Paulo — tratamento igual para iguais — confirmei de forma independente algumas informações contidas no texto, acrescentei outras e dei um número que, em minha opinião, fez a reportagem ser derrubada (jargão jornalístico para quando um trabalho vai para a gaveta do chefe): entre 2000 e 2004, a Planam comercializou 891 ambulâncias superfaturadas; 681 foram entregues antes do início do governo Lula, ou seja, no período em que José Serra e Barjas Negri eram ministros da Saúde. Isso, em si, não implica Serra, nem Negri diretamente no escândalo.
Mas deixa claro que um escândalo que se pretendia imputar ao governo Lula, para fins eleitorais, antes das eleições de 2006, teve sua gênese no governo de FHC (o mesmo se pode dizer do mensalão e da máfia dos sanguessugas, por exemplo), em ministério liderado por José Serra. Não se tratava de uma ilação ou de uma suposição, mas da verdade factual, registrada em documentos oficiais: 76% das ambulâncias superfaturadas foram entregues pela Planam no período Serra/Negri.
Para ler o que escrevi sobre isso, no meu caderninho de anotações, clique aqui.
Na mesma campanha, além de viver pessoalmente a experiência das denúncias seletivas ou da repercussão seletiva das capas da revista Veja, eu também vivi o famoso episódio da compra (ou suposta compra) de um dossiê contra José Serra por parte de gente ligada ao PT. Há ainda muitos pontos obscuros sobre o episódio, inclusive sobre a origem do dinheiro.
Vivíamos a disputa entre o presidente Lula e o tucano Geraldo Alckmin quando estourou o escândalo: a apreensão em um motel de São Paulo de dinheiro vivo que seria usado para comprar o dossiê. A apreensão aconteceu no dia 15 de setembro de 2006. Mas as famosas fotos do dinheiro só apareceram na antevéspera do primeiro turno, em 29 de setembro de 2006, vazadas pelo delegado da Polícia Federal Edmilson Bruno, com Lula (lembrem-se, candidato à reeleição) apresentado na Folha de sábado, 30 de setembro de 2006, véspera da eleição, no papel de trombadinha:
Curiosamente, todo o episódio dos aloprados mereceu extensa cobertura da mídia brasileira, com investimento dos melhores recursos disponíveis para esclarecer o que de fato aconteceu. Porém, o vazamento das fotos, em si, não recebeu o mesmo tratamento.
Narro o caso detalhadamente no livro do Viomundo e na versão antiga do site: o vazamento foi feito pelo delegado Edmilson Bruno a um grupo de repórteres. O delegado se comporta como um editor, sugerindo que os repórteres usem o photoshop. O delegado pede que as imagens recebam ampla disseminação. O delegado quer ver as imagens nos telejornais. O delegado informa aos repórteres que pretende mentir a um superior, jogando a culpa em uma faxineira.
Os repórteres ouvem tudo calados. No dia seguinte, os jornais publicaram trechos de uma entrevista do delegado Bruno quando muitos repórteres — pelo menos todos aqueles que receberam as fotos — já sabiam que ele estava mentindo. Para além de todas as questões éticas envolvidas no caso, que não pretendo abordar aqui, permanece uma curiosidade. A que “foto da Globo” o delegado se refere quando conversa com os repórteres? Foi feita uma foto especialmente para a Globo divulgar?
Como vocês, especialmente os jovens jornalistas, já devem ter notado, trata-se de um padrão: a seletividade. Seletividade de capas repercutidas. Seletividade dos denunciados. Seletividade dos ângulos investigados.
Seletividade a serviço de quem?
Mas, depois desta longa digressão, volto àquela conversa que tive com um colega, quando argumentei que 2006 estava de volta.
Ele: Não, vai ser pior, vai ser 1989.
E hoje, ao ler o blog do Evaldo Novelini, me dei conta de que eles (meu colega e o Novelini) têm razão.
Teremos 2006 + 1989.
O que o Novelini fez foi trazer de volta as capas da Veja, sempre ela.
Com medo do Lula (lembrem-se, meninos e meninas, Lula era candidato a presidente em 1989), a Veja ajudou a inventar no cenário político, em parceria com a TV Globo, o “caçador de marajás” Fernando Collor de Melo. Naquela época, essa era a dupla de ouro da mídia brasileira. O combo Globo + Veja era de fato formador de opinião. Não havia internet. A audiência das emissoras de TV era muito mais alta. Não havia DVD, nem TV a cabo.
Primeiro a Veja fez assim:
Depois, a Veja apresentou a solução (acompanhada, por exemplo, pelo Globo Repórter, que dedicou um programa completo ao governador de Alagoas):
Para ver mais, no blog do Novelini, clique aqui.
Pesquisem, que não pretendo me alongar por aqui:
1989 foi o ano em que Collor acusou Lula de ser dono de um aparelho de som muito sofisticado, injustificável para a sua origem de operário (não é brincadeira, é sério);
1989 foi o ano em que Collor levou à propaganda eleitoral Miriam Cordeiro, mulher com a qual Lula, viúvo, teve uma filha que reconheceu. Acusação? Lula teria pedido a Miriam que abortasse a criança e teria feito observações racistas em conversas cotidianas. Mas antes de aparecer na propaganda eleitoral de Collor, Miriam Cordeiro fez a denúncia diretamente no Jornal Nacional.
1989 foi o ano em que o jornal O Globo, para justificar o uso de Miriam Cordeiro na campanha eleitoral, produziu editorial em que defendeu parâmetros sobre a transparência na vida pessoal dos políticos que não aplicou mais tarde, quando escondeu durante quase duas décadas o filho de Fernando Henrique Cardoso com uma jornalista da empresa:
O Direito de Saber:
O povo brasileiro não está acostumado a ver desnudar-se a seus olhos a vida particular dos homens públicos.
O povo brasileiro também não está acostumado à prática da Democracia.
A prática da Democracia recomenda que o povo saiba tudo o que for possível saber sobre seus homens públicos, para poder julgar melhor na hora de elegê-los.
Nos Estados Unidos, por exemplo, com freqüência homens públicos vêem truncada a carreira pela revelação de fatos desabonadores do seu comportamento privado. Não raro, a simples divulgação de tais fatos os dissuade de continuarem a pleitear a preferência do eleitor. Um nebuloso acidente de carro em que morreu uma secretária que o acompanhava barrou, provavelmente para sempre, a brilhante caminhada do senador Ted Kennedy para a Casa Branca – para lembrar apenas o mais escandaloso desses tropeços. Coisa parecida aconteceu com o senador Gary Hart; por divulgar-se uma relação que comprometia o seu casamento, ele nem sequer pôde apresentar-se à Convenção do Partido Democrata, na última eleição americana.
Na presente campanha, ninguém negará que, em todo o seu desenrolar, houve uma obsessiva preocupação dos responsáveis pelo programa do horário eleitoral gratuito da Frente Brasil Popular de esquadrinhar o passado do candidato Fernando Collor de Mello. Não apenas a sua atividade anterior em cargos públicos, mas sua infância e adolescência, suas relações de família, seus casamentos, suas amizades. Presume-se que tenham divulgado tudo de que dispunham a respeito.
O adversário vinha agindo de modo diferente. A estratégia dos propagandistas de Collor não incluía a intromissão no passado de Luís Inácio Lula da Silva nem como líder sindical nem muito menos remontou aos seus tempos de operário-torneiro, tão insistentemente lembrados pelo candidato do PT.
Até que anteontem à noite surgiu nas telas, no horário do PRN, a figura da ex-mulher de Lula, Miriam Cordeiro, acusando o candidato de ter tentado induzi-la a abortar uma criança filha de ambos, para isso oferecendo-lhe dinheiro, e também de alimentar preconceitos contra a raça negra.
A primeira reação do público terá sido de choque, a segunda é a discussão do direito de trazer-se a público o que, quase por toda parte, se classificava imediatamente de ‘baixaria’.
É chocante mesmo, lamentável que o confronto desça a esse nível, mas nem por isso deve-se deixar de perguntar se é verdadeiro. E se for verdadeiro, cabe indagar se o eleitor deve ou não receber um testemunho que concorre para aprofundar o seu conhecimento sobre aquela personalidade que lhe pede o voto para eleger-se Presidente da República, o mais alto posto da Nação.
É de esperar que o debate desta noite não se macule por excessos no confronto democrático, e que se concentre na discussão dos problemas nacionais.
Mas a acusação está no ar. Houve distorção? Ou aconteceu tal como narra a personagem apresentada no vídeo? Não cabe submeter o caso a inquérito. A sensibilidade do eleitor poderá ajudá-lo a discernir onde está a verdade – e se ela deve influenciar-lhe o voto, domingo próximo, quando estiver consultando apenas a sua consciência.
EDITORIAL PUBLICADO EM O GLOBO NO DIA 14 DE DEZEMBRO DE 1989, QUINTA-FEIRA, DATA EM QUE LULA E COLLOR TRAVARAM O DEBATE FINAL ANTES DO SEGUNDO TURNO, EM 17/12/89
1989 foi o ano em que a polícia paulista vestiu uma camisa do PT em um dos sequestradores do empresário Abílio Diniz. 1989 foi o ano em que o então presidente da FIESP, Mário Amato, previu com ampla cobertura midiática que 800 mil empresários brasileiros fugiriam do país se Lula fosse eleito presidente. 1989 foi o ano da famosa edição deturpada do debate entre Lula e Collor, que foi ao ar no Jornal Nacional do dia 15 de dezembro faltando dois dias para o segundo turno, numa época em que o JN marcava mais de 60 pontos de audiência.
Tenho insistido que, mais do que a manipulação do conteúdo editorial, a violação mais flagrante da Globo naquela noite foi a divulgação, logo depois do compacto do debate, de uma pesquisa mostrando que Collor tinha “vencido” por ampla margem. A pesquisa incluiu uma pergunta que não tinha relação direta com o debate: o mais preparado para governar. Presumivelmente, a pesquisa foi feita apenas com quem viu o debate. Portanto, formalmente, a Globo deveria ter alertado que não se tratava de uma amostra de todo o eleitorado brasileiro, mas apenas daqueles que tinham visto o debate da Globo. Mas o Jornal Nacional jogou os números no ar assim:
Collor, o mais preparado para governar por 48% a 30%, faltando apenas dois dias para o segundo turno. Collor, o mais preparado para governar por 48% a 30%, numa eleição que ele venceu por margem inferior a 6%. Vejam o que o Carlos Matheus, do Gallup, comentou a respeito do episódio, neste vídeo:
Portanto, vocês podem notar que desde a redemocratização brasileira já temos uma certa tradição nos chamados “golpes de véspera” (aos quais os estadunidenses se referem como “october surprise”, já que as eleições lá acontecem no início de novembro). Como somos herdeiros do marketing eleitoral desenvolvido nos Estados Unidos, não é de estranhar que isso aconteça.
E a matriz dessa tradição está na seletividade das denúncias, das notícias e dos alvos de investigações. Na manipulação e na divulgação de pesquisas de opinião. Num próximo post pretendo explorar melhor essa linha histórica que fará da campanha deste ano 2006 + 1989. Analisar os paralelos entre Collor e Serra. E avançar num tema que tem pipocado aqui e ali:Será que teremos 2006 + 1989 + 1964?