JORNALISTA RELATA O HORROR NOS CÁRCERES DA DITADURA
"Choques elétricos nas orelhas, na língua, no pênis..."; em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), jornalista Pinheiro Salles relata com nauseante riqueza de detalhes a rotina diária de espancamentos a que foi submetido por dois dos noves anos em que esteve preso; depoimento é considerado um dos mais importantes já colhidos pela CNV; jornalista participou da elaboração de lista com nomes de 233 torturadores que em 1975 saiu de dentro do presídio pelas mãos de Dom Paulo Evaristo Arns
24 DE SETEMBRO DE 2013 ÀS 19:48
Por Laurenice Noleto, de Goiânia
247- “Durante cerca de dois anos – os primeiros dos quase nove anos em que estive preso - eu fui torturado, praticamente todos os dias, em diferentes presídios, primeiro do Rio Grande do Sul e depois em São Paulo. Fui submetido a todos os tipos mais cruéis de tortura. Eles – os torturadores – eram de uma criatividade enorme. Criavam mil formas de nos torturar. Só não me colocaram na cadeira-de-dragão – e não sei por que. Eles gostavam muito de me colocar era no “pau-de-arara”, pelado. Nos quatro primeiros meses, fiquei completamente nu e sem tomar banho.
“Fiquei tão machucado que já não andava mais. Era mantido num cubículo sem janela, sem cama ou colchão, cheio de ratos e com apenas um buraco no canto para eu defecar. Não conseguia sequer andar ou ficar de pé. Dois soldados me arrastavam pelos corredores do presídio, puxando pelas pernas, com o corpo no chão, para me levar à sala de torturas, onde davam continuidade às sessões de espancamentos e choques elétricos nas orelhas, na língua, no pênis e no ânus - ou nos dois ao mesmo tempo, com o ânus entupido com uma bucha de Bom-Brill.
“A sala das torturas tinham um mal cheiro tão forte, que mesmo quando a gente estava em outra cela e abriam a porta dela a gente sentia o seu fedor. Eles costumavam forrar o chão da sala de torturas com folhas de jornal, para aparar as fezes, a urina, o sangue e vômitos que resultavam das torturas no pau-de-arara. E tinha um torturador que sempre que chegava na sala desabotoava a braguilha e urinava na minha cara, na minha boca, pois depois de algum tempo pendurado no pau-de-arara a gente não dava conta de manter nem a boca fechada.
“Um dia, os soldados que sempre me arrastavam pelos corredores, fizeram-me ficar de pé e me olhar num espelho. Eu não me reconheci: meus cabelos e barbas estavam muito longos; meus olhos não tinham essa parte branca – era tudo preto; uma casca de ferida tomava toda a minha testa e as faces eram todas pretas de hematomas. Não se pode imaginar tanto horror, tanto terror! Tinha uma companheira – a Maildes Cresqui -, que era tão barbaramente torturada por um determinado torturador que, nos contou ela, era capaz de reconhecer os sons de seus passos e, só de ouvi-los tinha uma hemorragia vaginal na hora, de tanto medo, de tanto terror. Era muita loucura, muita criatividade dos torturadores. Parecia surrealismo.”
É com depoimentos assim, que tento reproduzir o mais fiel possível, pois não os gravei, que o jornalista Antonio Pinheiro Salles, 76 anos, no último dia 18 de setembro, passou à Comissão Nacional da Verdade, por mais de três horas seguidas, informações sobre a institucionalização da tortura durante o período da ditadura militar no Brasil. As histórias, contadas na primeira pessoa, narravam detalhes horripilantes, junto com datas, locais, nomes de companheiros presos e de seus torturadores. Pinheiro, que ficou preso durante nove anos (1970 a 1979), em presídios do Rio Grande do Sul e de São Paulo, é hoje presidente da Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas de Goiás e já escreveu cinco livros sobre a ditadura militar no Brasil. Pinheiro é marxista e ateu, mas quando rememora suas lutas, sua história e jorra emoção como se estivesse abrindo o peito e deixando falar sua alma.
Exemplo de vida
“O depoimento do jornalista Pinheiro Salles, colhido por determinação do coordenador da Comissão Nacional da Verdade, José Carlos Dias, é um dos mais importantes feitos até agora. Tanto pelo exemplo de vida, coragem e resistência nele personificados, como pela riqueza de informações e detalhes que, em momentos sofridos por cerca de nove anos de prisão e torturas, agora serão úteis à Comissão e ao fortalecimento da Democracia no Brasil.” A avaliação é do assessor da CNV, Daniel Josef Lerner, logo após o encerramento da oitiva, realizada na sala 224 da sede da CNV, no edifício do Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília.
A oitiva de Brasília, foi precedida de uma visita de Lerner, André Botelho Vilaron e Suellen Pires Maciel, a Goiânia, quando mantiveram um encontro com Pinheiro Salles, na sede do Sindicato dos Jornalistas, uma semana antes. Na sede da CNV, durante as quase quatro horas de depoimento, os três assessores ainda estiveram acompanhados de mais dois estagiários, repórteres de texto e fotográfico. André Vilaron informou que a Comissão Nacional da Verdade pretende fazer uma audiência pública sobre os casos de Goiás e que se está aguardando somente as definições de uma data e do formato do evento
De Goiânia, acompanharam Pinheiro Salles o advogado Francisco Pinheiro e esta jornalista (Laurenice Noleto Alves – a Nonô, que é também secretária da Comissão da Verdade dos Jornalistas de Goiás. Ela conta que, em muitos momentos, teve que controlar as lágrimas que insistiam em saltar dos seus olhos e tomar goles d’água pra engolir o choro, diante das cenas de terror pintadas nas falas do Pinheiro).
A grande lista de torturadores
Em outubro de 1975, quando ainda se encontrava no Presídio da Justiça Militar Federal de São Paulo, Pinheiro foi um dos três coordenadores que participou da elaboração de um documento, com informações colhidas junto a 35 outros presos políticos, onde conseguiram incluir os nomes e/ou pseudônimos de 233 torturadores. A lista saiu de dentro do presídio pelas mãos de Dom Paulo Evaristo Arns, após uma visita aos presos políticos, e foi encaminhada à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). E agora, na audiência à CNV, Pinheiro disse que, “continuando a cumprir meu dever de defensor do socialismo e dos direitos humanos, entrego a vocês a relação dos algozes que me torturaram, diretamente, nos dois primeiros dos meus nove anos (1970-1979) nas masmorras do regime fascista que infelicitou a nossa nação”.
E Pinheiro entregou à CNV uma lista com os nomes e pseudônimos de todos os torturadores que conheceu pessoalmente pelos 18 presídios em que ficou recluso durante os seus quase nove anos de prisão. E ainda fez uma emocionante fala: “Eu tenho confiança de que estão sendo criadas as condições para a punição dos torturadores e dos mandantes de todos os crimes praticados durante o período da ditadura civil-militar implantada no Brasil. O povo desconhece a real dimensão dos horrores daquela época. E só conhecendo profundamente os porões e suas barbáries, a população saberá erguer instrumentos que impeçam o ressurgimento das atrocidades que sofri e testemunhei. Não deixarei, jamais, de lutar e de acreditar no ser humano, na humanidade, na vitória de um tempo sem violência e sem desigualdade”.
E continuou: “Sou um sobrevivente e carrego em meu corpo sequelas irreversíveis desse tempo de terror. Estou com 76 anos e vivo para cumprir a tarefa que assumi de jamais me calar sobre o que sofri e testemunhei, na ocasião em que pude comprovar a capacidade da resistência humana. Aqui no Brasil, por mais de duas décadas, triunfaram alguns dos mais hediondos horrores já verificados na marcha da humanidade. Houve tortura e assassinato nos porões por onde transitavam os vermes. Generais, coronéis, almirantes, brigadeiros e agentes civis praticaram excrescências que não podem ser repetidas em nossa pátria e em nenhuma outra parte do mundo.”
A lista do Pinheiro
Na lista entregue na última quarta-feira, dia 18 de setembro, na sede da Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, constam os seguintes nomes de torturadores:
No Dops-RS (Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul): delegado Pedro Carlos Seelig, inspetor Nilo Hervelha, inspetor Joaquim, Itacir Oliveira, Paulo Artur, inspetor Luiz Carlos Nunes, investigador Pires, “Catarina” ou “Goulart”, major Átila Rhorsetzer, delegado Walter Souza Pinto, Firmino (Lopes Cardoso ou Peres Rodrigues), delegado Walter Sena, Machado, inspetora Walquíria, major Malhães ou Manhães, “Boco Moco”, inspetor Felipe, “Padre”, “Salgadinho”, delegado Marco Aurélio Reis, Ênio Nalich Coelho, inspetor Omar Gilberto Guedes Fernandes, Ivo Sebastião Ficher, inspetor Cézar, “Cardozinho”, “Chapéu”, Mello e Enerino Daixer.
No DOI-Codi/Oban, SP (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna/Operação Bandeirantes, SP): Carlos Alberto Brilhante Ustra, Altair Casadei, Maurício José de Freitas, “Marechal”, “Mangabeira”, “Dr. José”, “Jacó”, “JC” (“Jesus Cristo”), “Oberdan”, “Dr. Tomé”, capitão Dalmo Luiz Cirilo e Otávio Gonçalves Moreira (não consegui identificar todos os verdugos, nem mesmo pelo codinome). E na Delegacia Especializada de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops): Sérgio Fernando Paranhos Fleury, João Carlos Tralli, Alcides Singillo, Edsel Magnotti e “Carlinhos Metralha” (de muitos outros não descobri o nome ou codinome, mas eram integrantes do Esquadrão da Morte, em sua maioria).
Sempre com voz muito firme e forte, apesar de vez por outra ter que segurar o queixo que insistia em cair, devido ao massacre de suas duas mandíbulas nas torturas, Pinheiro Salles reafirma: “Sou um sobrevivente, anistiado político. Sustento a minha esperança de sempre, sem ódio ou mínimo sentimento de vingança. Aguardo o resultado das investigações da Comissão Nacional da Verdade e a revisão da Lei da Anistia para a necessária punição dos torturadores. Se isso não acontecer, que me prendam de novo, porque, já não prevendo outra oportunidade para esta punição, não aceitarei encerrar minha vida desfrutando de um benefício compartilhado com os energúmenos que aviltaram a nossa própria condição humana”.
Edição: Realle Palazzo-Martini
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