Por Lula Miranda, especial para o 247
É bastante conhecida a fábula do escorpião e do sapo. Ou alguma de suas variantes como, em sua versão “budista”, a fábula do escorpião e o monge etc.
Na versão com o sapo, ambos, o escorpião e o batráquio, estão na beira de um rio e necessitam atravessá-lo: uma tarefa fácil para o sapo, impossível para o escorpião. Este último então pede uma carona ao primeiro. O sapo, conhecedor da peçonha do pequeno artrópode, diz que não o levará, pois este iria certamente ferroá-lo. O escorpião o convence então de que não faria isso porque senão se afogariam ambos – inclusive ele, escorpião. O que seria uma estultice – arrematou sagaz. Ao que o sapo por fim se convence e resolve ajudá-lo a atravessar o rio. Quando, já no meio da travessia, sente a dor aguda da ferroada. Perplexo, questiona o seu carona que lhe responde impávido: essa é a minha natureza.
Na versão do monge, temos o homem e o escorpião como personagens da parábola ou da fábula.
Um homem é um homem; um escorpião é um escorpião. Isso não lhes parece uma platitude, uma obviedade? Deveria ser. Mas nem sempre é assim. Por vezes homens e escorpiões se confundem e se misturam; não somente nas fábulas, mas na realidade dos dias. Algumas vezes, em algumas ocasiões, o homem, tal qual o escorpião, está inexoravelmente encalacrado e “atado” à sua natureza primeva, “peçonhenta”.
O homem e o escorpião por vezes são seres bastante parecidos – para muito além das fábulas.
Na sessão do STF, que julgará a admissibilidade (ou não) dos embargos infringentes, estaremos diante da decisão de um juiz que poderá dar o seu voto em consonância com o que supostamente estaria a clamar a multidão, a chamada “turba ignara” – na verdade, essa não é, em absoluto, a expressão da vontade de multidão alguma, mas da grande imprensa mercantil e dos tucanos e demais antagonistas do PT em geral –, ou poderá/deverá julgar e votar de acordo com o que está previsto no regulamento, no cânone da Suprema Corte, que prevê a aceitação dos embargos infringentes quando existem 4 votos a favor do(s) réu(s)?
Remetendo-nos à fábula do escorpião, o ministro Celso de Mello nos dará uma demonstração da possibilidade (ou da impossibilidade) de um homem, ali colocado na condição de juiz, julgar e votar em estrito respeito e observância da lei e dos direitos, líquidos e certos, dos réus; ou, em vez disso, se deixar levar pela “multidão” ou por sua natureza, pela “peçonha”, pelo seu instinto [seu e de alguns de seus pares] e assim afundar no arbítrio, na intolerância, na injustiça.
É possível um juiz julgar alheio às suas paixões e predileções políticas?
Centenas, milhares de juízes, muitos dos quais recém-ingressados na magistratura; milhares dos chamados “operadores do direito” estarão de olho na decisão do ministro Celso de Mello, pois esta poderá lhes servir como uma lição definitiva.
Poderá servir como lição capital.
Não só aos jovens juízes, e tampouco aos réus, mas, sobretudo, a todos nós. Pois o que está em jogo não é tão somente algo essencial à Justiça e ao Direito. E, também, essencial para o respeito à hombridade, à dignidade e à vida dos réus e de suas famílias – como se isso em si e por si mesmo já não fosse o bastante.
O que está em jogo, para nós todos, e não somente para os ditos “operadores do direito”, é uma questão fundamental, que diz respeito ao Estado de Direito e à cidadania – que devem, por princípio constitucional, estar preservados e protegidos.
Protegidos e preservados inclusive da peçonha e vilania de alguns homens, cuja natureza em tudo se assemelha, perigosamente, aos escorpiões e outros bichos.
Lembro-me de alguns ministros vociferando “marimbondos de fogo”, escorpiões, cobras e lagartos em algumas sessões da AP 470, dando vez e voz às suas paixões políticas e, despudoradamente, despindo-se da sua condição de magistrado. Uma desabrida falta de pudor. Uma vergonha. Que passou na TV, como um espetáculo infame, promíscuo. Ao vivo e em cores.
O que me remeteu àquilo que predizia o poeta Augusto dos Anjos: “Acostuma-te à lama que te espera!/O homem, que, nesta terra miserável/ Mora entre feras, sente inevitável/ Necessidade de também ser fera”.
O que somos?
Juízes ou verdugos?
Homens ou escorpiões?
Conseguiremos ao final alcançar a outra margem do rio?